segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

É HORA DE GARANTIR O DIREITO À VERDADE E DE RECONTAR A HISTÓRIA DA DITADURA

A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República, em 2002, gerou enormes expectativas em relação à perspectiva de o Brasil finalmente ser capaz de tratar com a reverência e o respeito justos e devidos as histórias dos mortos e desaparecidos durante a ditadura militar (1964-1985). Ao liderar as grandes manifestações e greves da região do ABC paulista, no final dos anos 1970, Lula foi perseguido e preso pelo regime de exceção, enquadrado na nefasta Lei de Segurança Nacional; além disso, o Partido dos Trabalhadores manifestara, ao longo de sua trajetória, solidariedade e apoio às lutas e reivindicações dos familiares que perderam entes queridos, assassinados nos porões da ditadura. Estavam dadas condições objetivas relevantes para mudanças, também nesse segmento.

Oito anos depois, ao final dos dois mandatos de Lula, restou em relação ao tema específico uma sensação de frustração. Nesse caso, há certamente mais a lamentar do que a comemorar. Se foi responsável por promover desenvolvimento econômico com inclusão social e por fazer do Brasil uma nação respeitada internacionalmente, o ex-presidente pouco mexeu no vespeiro da herança da ditadura, pouco esteve de fato disposto a enfrentar as forças políticas que insistem em esconder a história recente do Brasil e se dedicam a continuar chamando de "terroristas" os militantes que ousaram enfrentar os militares - muitos dos quais deram a vida em nome do retorno das liberdades democráticas.

Quando Nelson Jobim ameaçou abandonar o ministério da Defesa, entre o final de 2009 e o início de 2010, por ocasião da divulgação do texto do Plano Nacional de Direitos Humanos 3, Lula recuou e determinou que fossem promovidas mudanças significativas no projeto, que acabaram por desfigurá-lo em tópicos importantes (a Comissão da Verdade, por exemplo). Foi a Advocacia-Geral da União, que representa o governo, quem defendeu no Supremo Tribunal Federal (SFT), em julgamento realizado em abril do ano passado, que permanecesse inalterada a interpretação jurídica dada ao texto da Lei da Anistia, argumentando que se trata de "um ato político de clemência cuja finalidade é o esquecimento de certos fatos criminosos, que o poder público optou por não punir".

Invarialvemente, o governo reverberou discurso desde sempre feitos pelos militares, alegando ser impossível avançar nas investigações sobre as mortes e os desaparecimentos em função da "não existência mais dos arquivos sobre o período". Mesmo já no final do segundo mandato, quando Lula sentiu-se sem amarras e mais à vontade para peitar tendências conservadoras (vide caso Cesare Batistti), o ex-presidente manteve silêncio e não veio a público para dar qualquer declaração sobre a punição do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), que responsabilizou o Estado brasileiro pelas violações de direitos humanos ocorridas durante a Guerrilha do Araguaia, determinando ainda que sejam desempenhados todos os esforços para que se possa localizar os corpos dos desaparecidos.

Reconhecidos os erros, as esperanças se renovam com a eleição e a posse de Dilma Rousseff. A Presidenta conheceu os porões da ditadura, foi vítima de torturas e traz no corpo e nas lembranças as marcas da truculência e do autoritarismo. Prestou emocionante homenagem a "todos os companheiros que tombaram na luta contra a ditadura", no discurso de posse, manifestando publicamente e desde o primeiro dia de seu mandato a percepção de que não é mais aceitável esconder a História recente do País. Ao contrário - é fundamental garantir o direito à verdade.

Em seu discurso de posse, a nova responsável pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos, ministra Maria do Rosario, reforçou a disposição de aprovar a Comissão da Verdade. Afirmou, em entrevista à revista Carta Capital, que "este é um tema que já vem sendo discutido há tempo e já falei com o Jobim (Nelson Jobim, da Defesa) e o Cardozo (José Eduardo Martins Cardozo, da Justiça) sobre isso. Meu argumento vem ao encontro do que disse a presidenta Dilma Rousseff no seu discurso: “não se trata de revanchismo”. Estamos movidos pelo entendimento e até pelo reconhecimento de que hoje no Brasil, no Estado brasileiro, não há qualquer instituição contra a democracia". 

Não será tarefa fácil. Nelson Jobim, reconduzido ao ministério da Defesa, continua atuando como ferrenho porta-voz da tese do "vamos esquecer o passado e olhar para a frente".  A tendência é que os embates se acirrem. E, afinal, governar é certamente dialogar e negociar, sem no entanto capitular ou barganhar princípios e valores que são fundamentais para a consolidação de um Estado democrático. O que está em questão é o direito à memória do País. Daí a esperança renovada deste blogueiro de ter em Dilma a Presidenta que finalmente permitirá ao Brasil saber o que aconteceu a seus mortos e desaparecidos durante a ditadura.

Para refletir sobre todos esses temas, o blog conversou com exclusividade com Cecília Coimbra, psicóloga, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e presidenta do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNM/RJ). Foi uma longa conversa, que será aqui publicada em duas partes. Cecília, também presa e torturada nos anos de chumbo, diz que não quer revanche ou punição, mas a investigação, a publicização dos fatos e a responsabilização pelos atos de arbítrio e violência. "O que vão fazer com essas pessoas é problema da Justiça".
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Cecília, começo pedindo uma avaliação sobre os oito anos do governo Lula em relação ao tema específico dos mortos e desaparecidos na ditadura. Quais foram os avanços e os bloqueios manifestados?
Olha só, não avançamos muito, infelizmente avançamos quase nada nesse tema. O Grupo Tortura Nunca Mais do Rio completou 25 anos no ano passado, em 2010. E, nesse tempo todo, percebemos que essa história oficial, que diz que os militantes que lutaram contra a ditadura são "terroristas", ainda está muito presente. Apareceu com muita força na campanha da Presidenta Dilma, recentemente. É uma criminalização de toda a oposição que foi feita àquele período. E uma tarefa que o Grupo tenta cumprir é justamente ligar os efeitos da ditadura civil-militar do Brasil com as violações de direitos humanos que acontecem hoje. Para nós, as questões da ditadura não estão apenas lá atrás, estão aqui, no nosso cotidiano, produzindo efeitos. Os movimentos sociais e a pobreza continuam sendo criminalizados. A figura do desaparecido político, por exemplo, foi o Brasil quem instituiu e exportou, porque o desaparecido não está em lugar algum, a família não tem notícias dele. Essa figura perversa foi instituída pelo regime militar e exportada para as demais ditaduras latino-americanas dos anos 1960 e 70. Coisas que hoje acontecem são reflexo daquele período. E, se a gente não conhece essa história, tais atrocidades vão continuar se repetindo. Quando a gente diz "nunca mais", não é só para os estudantes e intelectuais, é também para a pobreza, que continua sendo perseguida.

Você disse que os avanços no governo Lula em relação a esse tema praticamente não existiram. Por quê? Quais os impedimentos e as forças que se colocaram contra?
Avançamos muito pouco não apenas porque as expectativas eram muito grandes, mas muito mais em função dos acordos que foram feitos pelos primeiro e segundo governos de Lula, os acordos com as forças conservadoras, que respaldaram a ditadura. Algumas delas até participaram ativamente daquele momento. E cada vez esse arco de alianças se amplia mais. Essa perspectiva já vem desde a época da Anistia, quando foi feito um grande acordão. Esses acordos foram sendo ampliados nos dois governos Lula, a ponto de fazer com que algumas questões não pudessem ser tratadas. Sem dúvidas temos que destacar e valorizar a figura do ministro Paulo Vanucchi. Mas os primeiros secretários de Direitos Humanos, que tinham histórias de lutas e eram nossos companheiros, não fizeram nada para ajudar a recontar essa história. Estavam com as mãos atadas. Como disse, temos de reconhecer os embates nesse último período, travados principalmente pelos ministros Vanucchi e Tarso Genro, da Justiça, que eram as vozes aliadas que tínhamos. Apesar disso, tivemos retrocessos, porque os dois não tiveram força e apoio suficientes no interior do governo. É luta de poder, a gente sabe disso, não somos ingênuos. E o que se impôs foi a visão do ministro Jobim, a quem não interessa fazer qualquer tipo de revisão.

Nesse embate, Jobim é uma figura-chave, que vai representar e legitimar as demandas dos militares, bloqueando qualquer processo de apuração ou de investigação. E ele permanece no ministério.
Nelson Jobim tem essa função. Mas tem também outro papel, que tem relação não só com as questões da ditadura, mas está ligado diretamente a debates contemporâneos, como a Força Nacional, a intervenção das Forças Armadas no Rio de Janeiro. São questões que dizem respeito à segurança pública, a toda uma política militarizada que se concretizou no pós-ditadura, e que trata a pobreza como criminosa. É a tolerância zero, importada dos Estados Unidos, onde você mantém a população monitorada e criminaliza qualquer pequeno delito. É o que está acontecendo no Rio de Janeiro. O Nelson Jobim apoia esse tipo de ação e é uma figura importante do governo.

É a atuação do Jobim por exemplo que vai promover mudanças significativas no Plano Nacional de Direitos Humanos 3. Esse foi um dos retrocessos principais, uma derrota das forças progressistas?
Certamente. Foi uma grande perda. O Vanucchi e o Tarso não tiveram força para segurar. Foi um retrocesso. Para nós, é uma questão seríssima. Quando a gente fez a Conferência Nacional de Direitos Humanos, em dezembro de 2008, foi uma companheira de Minas Gerais quem levantou esse debate sobre a Comissão da Verdade, que acabou incorporada às reivindicações finais. E quando esse Plano é elaborado, há uma série de deliberações, como a Comissão da Verdade, que já tinham sofrido modificações. Estou falando da primeira edição, de dezembro de 2009. Uma coisa que a gente já denunciava à época era a questão referente à organização, a como seria instituída e formada a Comissão. Ficou estabelecido que seriam seis membros no grupo de trabalho, sendo cinco autoridades governamentais e um representante da sociedade civil escolhido por essas autoridades. Isso era anti-democrático. As Comissões de Verdade instituídas em outros países da América Latina e na África do Sul tiveram participação majoritária de representantes da sociedade civil. Quando vem aquela reação dos militares, no início de 2010, com o Jobim à frente, e o governo Lula recua, temos então um novo texto aprovado em maio de 2010 que é pífio.

E o que restou foi um arremedo do projeto original.
Veja só, esses recuos são muito sérios. Eu sou professora universitária, trabalho com História. Fui recentemente chamada para participar de uma banca de doutorado na USP, em um programa de pós que lida com a integração da América Latina. Era uma tese muito interessante, que fazia comparações entre Brasil e Argentina, mas que colocava o período da ditadura brasileira começando em 64 e terminando em 79, ou seja, considerava a Anistia como marco final do terror. E é essa a história oficial que querem impor. O novo texto que trata da Comissão da Verdade, o que foi aprovado em maio, abandona o período de 64 a 85 e fala genericamente em apurar violações de direitos humanos cometidas de 18 de setembro de 1946 (data da Constituição pós-Getulio Vargas) até a promulgação da Constituição de 1988.
Ou seja...

Ou seja, a intenção seria confundir e não apurar.
A intenção é retirar a ditadura civil-militar da História desse país. E isso já está acontecendo. Quando eu participo dessa banca eu vejo isso e digo: olhem os efeitos desse movimento aqui nessa tese. Isso produz um efeito histórico nefasto. Levantei esse debate naquela banca examinadora.

Para colocar os pingos nos "is", quais seriam as funções e tarefas da Comissão da Verdade? Porque o ministro Jobim insiste também em dizer que aceita a comissão, desde que cumpra o papel de investigar aquilo que ele ardilosamente chama de "os exageros cometidos pelos dois lados".
Mas os militares dizem isso há anos. Ele está simplesmente repetindo e sendo porta-voz do que há de mais conservador na área militar. E eu repito: é o que há de mais conservador na área militar, porque tem muitos militares e muitos segmentos nas Forças Armadas que não defendem essa posição. Essa é a postura fascista daqueles que respaldaram a ditadura e participaram dela. Não é novidade, a gente ouve esse discurso desde a Anistia, que aliás sempre foi interpretada ao bel-prazer deles, que dizem que crimes conexos significa anistiar torturador, tese que já foi desmontada juridicamente por personalidades como Fabio Comparato e Helio Bicudo. Então, essa fala do Jobim não surpreende. O que uma Comissão da Verdade com participação democrática da sociedade deveria fazer? Poder convocar pessoas, abrir arquivos, ouvir testemunhos dos dois lados. É importante ouvir os militares? É fundamental. Mas é importante que nós também sejamos ouvidos. A gente sabe que os arquivos existem. É preciso levantar essas informações, investigar, publicizar e responsabilizar. Nós não estamos defendendo punições. Não estamos pedindo prisão perpétua, como aconteceu ao Jorge Videla, na Argentina. O Tortura Nunca Mais do Rio é contra essa lógica da repressão pura e simples. O que a gente quer? Saber o que aconteceu. A gente não quer a verdade única, trazida pelos governos. Nós queremos as variedades das histórias que estão aí. Essas memórias precisam ser contadas. Nós somos testemunhas do período e temos de dar esse testemunho. Os militares precisam publicamente mostrar suas caras e dizer o que fizeram e que crimes cometeram em nome da tal segurança nacional. Não estamos pedindo punição. Queremos investigação, publicização e responsabilização. O que vão fazer com essas pessoas é problema da Justiça.


Leia amanhã - O Supremo Tribunal Federal (STF) e o julgamento da Lei de Anistia, a condenação do Brasil pela Corte da OEA, as outras ditaduras na América Latina e as tarefas do governo Dilma.

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